quinta-feira, 12 de junho de 2008

Crítica:

«Homens duros

Dashiell Hammett reinventou o romance policial. Tirou-lhe em sangue e violência o que lhe deu em cinismo e ironia. José Riço Direitinho.

Dashiell Hammett (1894-1961) é um dos autores clássicos da literatura norte-americana do século XX. Alguns dos seus livros foram por cá publicados há muitos anos na famosa colecção "Vampiro", e apenas podiam ser encontrados (com sorte!) em alfarrabistas. Mas as edições O Quinto Selo decidiram traduzir e publicar, ao ritmo de um por mês, os únicos cinco romances que Hammett escreveu. A colecção iniciou-se com o "Falcão de Malta", e prosseguiu com "O Homem Sombra" e "A Chave de Cristal". Anunciam-se para breve os dois restantes: "A Maldição dos Dain" e "Colheita Sangrenta". O resto da obra de Hammett é constituído por mais de meia centena de histórias curtas, nem todas recomendáveis em termos literários, que durante a década de 1920 foi publicando - muitas vezes por razões económicas - na revista "Black Mask", de São Francisco. Hammett escreveu os cinco romances em cinco anos, depois disso passou mais trinta a tentar voltar a escrever. O que nunca conseguiu.
"O Homem Sombra" é, provavelmente, o romance de Hammett mais conseguido em termos da caracterização das personagens e da descrição dos ambientes de "glamour" onde decorre a acção: Manhattan, anos 1930. Nick Charles, a personagem principal, fora um detective privado antes de se casar com a sua jovem e rica Nora. Estão ambos em Nova Iorque de férias quando uma mulher aparece morta e o principal suspeito - porque desapareceu na mesma altura - é Clyd Wynant, inventor louco e amante da morte, e que em tempos fora cliente de Nick. O advogado de Wynant contacta Nick Charles e quer entregar-lhe a investigação. Este vai recusando sucessivas vezes. Também Nora insiste com ele para que aceite o caso. Ele responde-lhe com uma frase que poderíamos dizer "típica de Hammett": "- Além disso, não tenho tempo, estou demasiado ocupado a tentar evitar que percas o dinheiro que me fez casar contigo. - Beijei-a. - Não achas que uma bebida podia ajudar-te a adormecer?"
A escrita de Hammett é realista, a acção progride pelos diálogos, não há espaço para a narrativa de floreados estilísticos, nem para descrições elaboradas que escondem mais do que mostram, tudo é "escrito no osso" e é esta característica o que melhor suporta a história e prende o interesse dos leitores até ao final - que é sempre surpreendente. As personagens são "reais" e falam como "deveriam" falar. Aliás, Hammett chegou a afirmar algures que "conheceu em pessoa todas as personagens" que lhe enchem os livros.
"O Homem Sombra" (o último dos cinco romances a ser escrito) foi na literatura americana um olhar novo sobre os "dias escuros" dos anos 1920 e dos começos da década de 1930. Eram os tempos da Lei Seca, dos "speakeasy", dos gangsters organizados, dos polícias corruptos. A escrita de Hammett forjou uma nova linguagem, uma nova maneira de descrever o mal sem piedade. Ao contrário dos autores de policiais da época - cujas histórias tinham lugar em meios rurais - Hammett trouxe o "cenário" para a cidade, para o centro, para Manhattan e usou a violência para descrever o pesadelo urbano.
À semelhança do que acontece com os detectives em quase todos os romances de Hammett, também o de "A Chave de Cristal", Ned Beaumont, é um bebedor compulsivo de uísque, o que levou alguns biógrafos e críticos a dizerem que todos os detectives "hammettianos" são auto-retratos. "Ned Beaumont tomou banho, vestiu-se e estava a acender um charuto quando o criado lhe trouxe o uísque. Pagou ao rapaz, trouxe um copo da casa de banho e puxou uma cadeira para junto da janela. Sentou-se a fumar, a beber e a olhar para baixo, para o outro lado da rua, até que o telefone tocou." E se a isto juntarmos, pelo menos no caso deste Ned Beaumont, o facto de ser alto e magro e de ter padecido de tubercolose, o retrato fica ainda mais completo. O enredo de "A Chave de Cristal" é um dos mais intrigantes de Hammett. Paul Madvig, alto funcionário da polícia nova-iorquina, tem um desejo: casar com a filha do senador Henry, para deste modo entrar numa família de políticos e iniciar a sua carreira. Mas um filho do senador aparece morto, e Ned Beaumont, amigo de Paul Madvig e com a ajuda deste, decide-se a investigar o caso. É o começo de uma sucessão de surpresas, de um curropio de personagens construídas com poucos traços mas de forma incisiva, e onde a arte da escrita de Hammett mostra todo o seu génio.»

Ípsilon, Público, 25 de Abril de 2008
Crítica:

O Falcão de Malta
Dashiell Hammett

O regresso de um clássico superior deve ser sempre motivo de celebração entusiástica. O Falcão de Malta, uma das obras-primas de Dashiell Hammett, está agora de novo nas livrarias portuguesas, com a chancela O Quinto Selo, décadas depois da Livros do Brasil o ter editado, na icónica colecção Vampiro. Aquando da publicação da obra, em 1930, Hammett era apenas mais um escritor a soldo da revista pulp Black Mask, que publicava histórias negras de crime, violência e sexo. O estilo hardboiled, que ainda hoje define um género de literatura, não era considerado, e as narrativas pareciam estar limitadas ao submundo que exploravam. No entanto, Hammett, e Sam Spade, o detective da história, vieram alterar as coordenadas. Veterano da guerra, ex-investigador e membro do partido comunista americano, Hammett apropriou-se de um modo instrumental do estilo hardboiled, usando-o para retratar, num modo seco e directo que fez escola até hoje, a sociedade americana, cenário privilegiado do mundo capitalista. O que interessava ao escritor era o confronto entre o Poder e a corrupção e o sentido de justiça do indivíduo solitário, que apesar disso não abandona a luta por um mundo melhor, ou, pelo menos, onde as desigualdades e o crime dos poderosos podem ser travados. Spade é o modelo desta luta: aparentemente cínico e amoral, é na verdade uma espécie de justiceiro por conta própria, capaz de resistir a todos os poderes instalados, a começar pela polícia, e de lutar por uma causa que não é capaz de partilhar mas na qual acredita por instinto. É neste contexto que Spade circula, entre uma mulher fatal, Brigid O'Shaughnessy, um ladrão que dá pelo nome de Joel Cairo, Gutman, arquétipo da ganância e da falta de ética, e uma estátua de um falcão. O Falcão de Malta iria transformar-se rapidamente na referência de muitos escritores, a começar por Chandler, e, muitos anos depois, a ser exemplo fundamental da grande novela americana.

José Vegar, Time Out Lisboa, 23 de Abril de 2008